domingo, 20 de fevereiro de 2011

FÉ E RAZÃO - "FIDES ET RATIO"

Encíclica de João Paulo II
"FIDES ET RATIO"
"Fé e Razão"



INTRODUÇÃO:

Parte-se da cristologia presente na ‘Fides et Ratio’ ‘Fé e Razão’: a Redenção e a Encarnação. Pela análise desses dois mistérios, percebe-se como a razão entra na esfera do divino, iluminada pela luz dos mistérios dos quais se torna, pela fé participante.

Esse facto não humilha, mas dignifica a razão ao máximo.

Purifica-a, eleva-a, aperfeiçoa-a, respeitando a sua autonomia.

O próprio ser humano cresce na sua humanidade e na sua personalização.

São a fé e a razão celebrando o seu maior triunfo.

São razão e fé no respeito mútuo da respectiva autonomia, realizando a mais perfeita simbiose e a mais bela aventura.


* REFLETINDO SOBRE

As aventuras da fé à luz da Encíclica Fides et Ratio, devemos ter diante dos olhos a finalidade dessa Carta Pontifícia. Entre as preocupações do Papa está a convicção da Igreja de que fé e razão se “ajudam mutuamente” (Vaticano I, Constituição Dogmática Dei Filius, DS 3.019), exercendo uma em prol da outra a função de “discernimento crítico e purificador e de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento” (n. 100).

É essa última função da fé em relação à razão que considero aqui para esclarecer sempre mais o relacionamento fé e razão. Irei tocar na “cristologia” da Encíclica. Em alguns tópicos ela faz-se presente na Encíclica e creio que, analisando-os, podemos tirar um bom proveito.


* O MISTÉRIO DA CRUZ E DA RAZÃO

A Fides et Ratio coloca-nos diante de um problema que nunca foi fácil: “a relação fé e razão”.

Como é que eles se harmonizam, se é que se harmonizam?

É muito estranha a afirmação do Apóstolo São Paulo na 1º Coríntios: “Enquanto os gregos procuram a sabedoria, nós pregamos Cristo Crucificado, loucura para os gregos... Mas, aquilo que é loucura de Deus, é mais sábio que os homens” (1º Cor 1, 22-25).

Quem entende isso: Cristo Crucificado sabedoria de Deus? O que significa na mente do Apóstolo a morte de Jesus Cristo? O que significa para ele o Filho de Deus Crucificado?

Se olharmos a 1º Cor, significa “sabedoria de Deus, poder de Deus”.

Fé e razão ajudam-se mutuamente, exercendo uma em prol da outra a função de discernimento crítico e purificador e de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento.


É sabedoria de Deus, pois, “Deus escolheu no mundo aquelas coisas que nada são para destruir as que são” (1º Cor 1, 28). Cristo Crucificado é o grande desafio lançado à nossa razão. A morte de Jesus na Cruz é o verdadeiro ponto nodal que desafia qualquer filosofia (n. 23).

Como é que Cristo Crucificado pode ser sabedoria?

O próprio Jesus na Cruz perguntou-Se: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15, 34-35).

A fé diz-nos que Cristo Crucificado significa não ser na rejeição do sofrimento e da morte que a “identidade pessoal” encontra solução, mas, antes, na “aceitação obediente e livre” do sofrimento e da morte como “espaço” no qual se exerce a “liberdade” para exprimir amor.

Cristo Crucificado é fonte de vida e sinal mais perfeito de um amor “totalmente gratuito”: “Tanto Deus amou o mundo que lhe deu o Seu Filho Único para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).
É essa a resposta da fé.


E a resposta da razão? “Como é que fica a razão”?

Ela encontra-se diante de uma realidade que a ultrapassa.

O Filho de Deus Crucificado supera “todo e qualquer limite cultural”. É interessante notar como Jesus mesmo prepara os seus Apóstolos para a loucura e o escândalo da Cruz.

É suficiente acompanhar o evangelista Marcos. Ele vai levando a redacção do seu Evangelho com episódios, detalhes e proibições de que digam que Ele é o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo, como também, até o momento trágico em que, Jesus expirando na cruz com um grande grito, o centurião romano que lá se encontrava exclama: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15, 39).

Diante da kénosis de Deus no mistério da cruz, mistério verdadeiramente grande para a mente humana, tanto mais que lhe parece insustentável a afirmação de que o sofrimento e a morte possam exprimir o amor que se dá sem pedir nada em troca.

A grande questão aqui é como compreender que no aniquilamento do Filho de Deus na sua humanidade se possa encontrar o caminho da felicidade do ser humano e do próprio mundo? Como é que da morte de um ser estraçalhado, tal qual foi Jesus, possa nascer a vida?

Como entender que ainda hoje a salvação e a felicidade do ser humano e do mundo passam pela cruz?

A razão, colocada diante desse mistério, entra na “esfera” do saber divino. É só nessa esfera que ela encontra uma resposta à medida que se abre à esfera do saber divino, à medida que se abre à fé. O mistério, na realidade, é um abrir-se da esfera divina à esfera da razão humana. A razão humana, por isso, não é humilhada pelo mistério, mas é antes exaltada ao máximo. Interessante a afirmação da Encíclica: “A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano ilimitado da verdade.

Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço onde as duas se podem encontrar” (n. 23). E o espaço é precisamente aquele no qual se exerce a liberdade para exprimir um amor totalmente gratuito. É só na doação obediente e livre que a pessoa encontra “a resposta última” à pergunta “do sentido de sua existência”.


* O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO E A RAZÃO

A Encarnação do Verbo é outro problema acentuado pela Encíclica.
Está sempre em jogo o problema do sentido da existência.
Qual a resposta que a palavra de Deus, ou então a fé, dá a esse problema?
Ela encaminha o ser humano para Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, que realiza em plenitude a existência humana.
Aqui estão implícitas algumas passagens da Sagrada Escritura, especialmente da Carta aos Colossenses e da Carta aos Efésios.

Na Carta aos Colossenses, temos: “Nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude” (Col 1, 19): “Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade e nele fostes levados à plenitude” (Col 2, 9).

Na Carta aos Efésios 1, 10 e 1,23, fala o Apóstolo Paulo da plenitude dos tempos em que Deus quis recapitular tudo em Cristo, e do Corpo de Cristo, plenitude daquele que planifica tudo em todos (cf. ainda Ef 3, 19 e 4, 13).
O mistério, na realidade, é um abrir-se da esfera divina à esfera da razão humana.

É outra vez uma indicação da palavra de Deus, isto é, da fé, como a vida humana e o mundo têm um sentido e caminham para a sua plenitude, que se verifica em Jesus Cristo. Esse mistério da Encarnação, afirma a Encíclica, permanecerá sempre “o centro de referência” para se poder compreender o enigma da existência humana, do mundo criado, e mesmo de Deus (n. 80).
Porquê assim? É nesse mistério que a razão encontra “os desafios extremos”.

A razão é chamada a assumir “uma lógica” que destrói as barreiras onde ela mesma corre o risco de se fechar. A razão diante de um Deus que se faz homem – o Infinito unindo-se indissoluvelmente, sem mistura, sem confusão, mas substancialmente com o Finito (natureza humana, ser humano: “o homem Cristo Jesus”, 1 Tim 2, 5) – supera de novo todos os limites.

É a Eternidade unindo-se estreitamente ao Tempo, tanto que com a Encarnação do Filho de Deus, do Verbo Divino, chegou “a plenitude dos tempos” (Gálatas 4, 4), começaram “os últimos tempos”, os novíssimos tempos (Hebreus 1, 1-2), o final dos tempos, o final do mundo que já começou: “Cumpriu-se o tempo (o grego indica, pelo verbo que usa, plenitude: chegou a plenitude do tempo!); o Reino de Deus se aproximou (= se tornou nosso próximo!); convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15).

É aqui que o sentido da existência humana é criado e alcança o seu ponto culminante.
É aqui que a fé e a razão celebram o seu maior triunfo: a natureza divina e a natureza humana unidas indissolúvel e substancialmente na pessoa do Verbo (união hipostática) num só vínculo em mútuo relacionamento, sem confusão, respeitando a respectiva “autonomia”: as duas naturezas distintas mas não separadas, caminhando juntas!
É, de facto, o encontro, ou se quisermos, o encaixe de duas liberdades: “a liberdade infinita do Verbo”, do Filho de Deus, e “a liberdade finita do ser humano”.

A fé e a razão celebram o seu maior triunfo porque a fé é o dom infinito, o dom que brota da intimidade de Deus, e a razão é o dom finito. É precisamente no mistério da Encarnação, nessa união íntima, substancial, indissolúvel, do Infinito e do Finito, que podemos entender a simbiose entre fé e razão, sem confusão, cada qual na sua autonomia, realidades distintas, mas não separadas.

Compreender, pois, o enigma da existência humana, significa colocar o sentido do ser do homem dentro da plenitude de Cristo, no qual o ser humano se planifica (cf. Ef 1, 23).
Contudo, compreender o enigma do mundo criado de que forma?
É em Cristo o primogénito de toda criatura (Col 1, 15-16).

A fé e a razão celebram o seu maior triunfo porque a fé é o dom infinito, o dom que brota da intimidade de Deus, e a razão é o dom finito.

O Bem-aventurado João Duns Escoto diria: “é o primeiro predestinado” na ordem da intenção, sem sê-lo necessariamente na ordem da execução (in ordine intentionis, non in ordine exsecutionis).
Em Cristo foram feitas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis... tudo foi criado “por ele e para ele”.
Ele é antes de tudo e tudo subsiste nele (Col, 1, 15-17).

Ele é a plenitude do Universo; é a obra-prima de Deus na Sua comunicação connosco.
É a forma mais alta, mais sublime, mais total encontrada por Deus para se comunicar connosco. Cristo é “a perfeição do Universo”.
Daí a pergunta: por que existo e para que existe o mundo criado?
A resposta só pode ser esta: para encontrar a minha perfeição em Cristo e ser como Ele o louvor e glória da Sua graça, para ser filho adoptivo de Deus por Jesus Cristo (Efésios 1, 6.5), para o mundo ser planificado em Jesus (Efésios 1, 23).
E mesmo para entender o enigma de Deus? Porque a Encarnação é a suma manifestação do amor gratuito de Deus em nós.
É, como dizem os teólogos: summa manifestatio Dei ad extra!
A suma manifestação que Deus faz em nós.

Para ser ainda mais claro, olhando agora de outro ângulo.
O Papa lembra, baseado no livro da Sabedoria, capítulo 13, livro do Antigo Testamento, e em São Paulo, Carta aos Romanos, capítulo 1º, 19-20, como “a razão” pode chegar ao Transcendente. Ali aparece o ponto mais alto a que a razão poderá chegar como pura razão.

Ora, a Encarnação do Verbo dá à razão nova luz. O mistério da Encarnação deixa ver que o “Transcendente e o Imanente” podem unir-se mais intimamente, podem unir-se substancial e indissoluvelmente, mostra que o encontro entre o Infinito e o Finito é possível e de facto se realiza em Jesus Cristo.

Abre, por isso, novas perspectivas para a razão.
A razão entra na esfera do divino. A razão é exaltada. Ela tem agora possibilidade de se perguntar não só sobre a possibilidade mas também sobre o “modo” como isso se pode realizar, e mais ainda, sobre o que significa essa união íntima para a vida, qual o sentido dessa união maravilhosa entre o divino e o humano, entre o não criado e o criado, entre Deus e o Universo. Por isso, mais uma vez, é no encontro do Infinito com o Finito, na Pessoa do Verbo Eterno, do Filho de Deus, que a razão e a fé celebram o seu maior triunfo e intuem a sua mais profunda perspectiva.

Cabe muito bem aqui um texto da Constituição Pastoral do Vaticano II, Gaudium et Spes, que João Paulo II gosta de citar sempre de novo:
De facto, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem (Reapse nonnisi in mysterio Verbi incarnati mysterium hominis vere clarescit).
Com efeito, Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir, isto é, de Cristo Senhor (Adam enim, primus homo, erat figura futuri, scilicet Christi Domini).

Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação (Christus, novissimus Adam, in ipsa reveelatione mysterii Patris Eiusque amoris, hominem ipsi homini manifestat eique altissimam eius vocationem patefacit).
Não é portanto de se admirar que em Cristo estas verdades encontrem a Sua fonte e atinjam o seu ápice (Nil igitur mirum in Eo praedictas veritates suum invenire fontem atque attingere fastigium). (n. 22 da GS)

O que significa essa passagem do Vaticano II?
Nada mais e nada menos do que isto: o mistério do homem se quiser encontrar o seu sentido deve colocar-se na luz de um mistério maior, que é o de Jesus Cristo encarnado: “Por sua encarnação o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem” (Gaudium et Spes, 22) (Ipse enim Filius Dei incarnatione sua cum omni homine quodammodo Se univit).

O grande risco que o ser humano corre hoje é ele encerrar-se cada vez mais nos limites “da própria imanência”, sem qualquer referência ao “transcendente” (n. 81). O ser humano corre o perigo de se afogar na imanência e ficar a rastejar sem conseguir voar mais alto até atingir a transcendência.
É por isso que tantos hoje se perguntam se ainda tem sentido pôr-se a questão do sentido (n. 81)

Aí se levantam muitas teorias tentando dar uma resposta, ou vêm à tona diversos modos de ver e interpretar o mundo e a vida do ser humano agravando a dúvida radical (tem ainda sentido pôr-se a questão do sentido?), e facilmente se desemboca no “cepticismo”, na “indiferença” ou até no “niilismo”. São as posições dos que julgam que não se tem certeza de nada nem se pode ter, tanto faz, como fez, não há fundamento para uma verdade realmente objectiva, nada de consistente existe.

Dessa forma, nega-se a “humanidade do ser humano” e a “sua própria identidade”.
Ninguém mais sabe quem é quem.
Caímos necessariamente numa das maiores ameaças deste final de século: o “desespero”, a mais desesperada “solidão”.

E se não existe nada de certo, ou, pior ainda, nada de nada sobre o ser humano, é iludir-se querendo torná-lo livre. “Verdade e liberdade” “ou ” andam juntas “ou” juntas perecem miserávelmente (n. 81).

Não podemos perder de vista “o ser” das realidades, pois perdê-lo de vista é perder o contacto com a verdade objectiva e, consequentemente, acabamos também com a dignidade humana.
“O Verbo de Deus é a origem de todo o ser”: “Tudo foi feito por Ele e nada do que tem sido feito foi feito sem Ele. Tudo subsiste nele (cf. Jo 1, 3; Col 1, 16; cf. também Hebreus 1, 2-3).
O Verbo é o ponto fundamental de toda a criação!

Não podemos deixar-nos envolver por certa mentalidade “positivista”, embutida no actual cientificismo, de sorte a nos iludir de que, graças às conquistas científicas e técnicas, o homem, como se fosse um demiurgo, será capaz de chegar por si mesmo a garantir o domínio total do seu destino (n. 91).

Pelo exposto, vê-se como e razão dinamizadas pela vontade se entrelaçam perfeitamente.
Uma não se opõe à outra; mas uma ajuda a outra, dentro da respectiva autonomia.
A fé não abafa a razão, não a mortifica, não a humilha, mas, muito pelo contrário, exalta-a, fazendo-a entrar na esfera do divino.

Reflectindo sobre essas realidades presentes no acto de fé: inteligência (razão), vontade, graça, notamos de modo muito claro como o ser humano é trespassado pelo divino. A Encarnação do Verbo, do Filho de Deus, oferece-nos a chave para entendermos a maravilha do amor de Deus para connosco.

Segundo um adágio teológico: a graça supõe a natureza; cura-a, eleva-a, aperfeiçoa-a, podemos entender muito bem o que a fé significa de grande para a razão.
A nossa razão participa da ferida que o pecado lhe infligiu.

O Papa na Encíclica Fides et Ratio lembra-nos que “o problema do mal moral – a forma mais trágica do mal – não pode ser reduzido a uma mera deficiência devida à matéria, mas é uma ferida que provém de uma manifestação desordenada da liberdade humana” (n. 80).

A nossa razão é afectada por essa “ferida”. A fé, que é graça, “sara” essa ferida, “purifica” a nossa razão, bem como a nossa vontade “eleva-a”, torna a nossa razão mais nobre e “a aperfeiçoa”, dá-lhe perfeição.
Também sobre esse aspecto, fé e razão se encontram e se ajudam mutuamente.

A fé incide profunda e positivamente na vida do ser humano, faz com que a nobre faculdade da nossa razão e da nossa vontade se tornem mais humanas.

Longe de ser uma diminuição das nossas faculdades humanas e por isso uma negação, de algum modo, da nossa humanidade, é, ao contrário, uma “elevação” das nossas faculdades, um “aperfeiçoamento”, uma “afirmação” da nossa humanidade e da nossa identidade.

A fé não abafa a razão, não a mortifica, não a humilha, mas, muito pelo contrário, exalta-a, fazendo-a entrar na esfera do divino.

A fé dá uma confirmação mais perfeita a toda a nossa existência.

A fé humaniza-nos e personaliza-nos ao máximo.

ESTA É A AVENTURA DA FÉ!


Hélder M. Gonçalves


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